Os feudos dos privilégios e o xadrez
Durante muito tempo criticou-se no Brasil a chamada reserva de mercado da informática. Os seus defensores alegavam que era para proteger a indústria brasileira. Os que a criticavam
diziam que ela dificultava o acesso a produtos estrangeiros, melhores e mais
baratos.
A questão, que hoje parece encerrada, era polêmica e nunca cheguei a formar um juízo definitivo sobre ela.
Mas as reservas de mercado continuam existindo e, em alguns casos, me parecem coisa legítima, mas, em outros, nem tanto. Acho natural que medicina e engenharia sejam exercidas por
pessoas habilitadas para o exercício da profissão. O que pressupõe a existência
de um diploma. Mas há que se ter uma medida para as coisas e, em alguns casos,
algumas circunstâncias especiais falam mais alto.
Por exemplo, o Zanine Caldas fez belos e funcionais projetos de casas e, no entanto, nunca teve diploma de arquiteto. Deveriam tê-lo impedido de fazer as casas que fez? O Carlos Lacerda,
que foi deputado e governador do antigo Estado da Guanabara, exerceu a
profissão de jornalista e, no entanto, não tinha nenhum diploma de curso
superior. O Paulo Francis, que escreveu em diversos jornais e revistas, fez
crítica teatral, escreveu livros, também não tinha diploma. Deveriam os dois
serem preteridos, nas redações dos jornais onde trabalharam, por alguém que
tivesse diploma, mas nem de longe tivesse a inteligência, a cultura e o domínio
do idioma que eles tinham?
Dogma é coisa perigosa. Foi pelos seus dogmas que a Igreja mandou Giordano Bruno para a fogueira e pelo mesmo caminho iria o Galileu se, a tempo, não tivesse se retratado. Mesmo
estando Galileu certo e o Cardeal Belarmino e os dominicanos errados.
O Brasil está cheio de professores não diplomados. E isso porque não os há em muitos lugares. Então, lança-se mão do que há disponível, o que é melhor do que nada. E não há nessa
situação nenhuma originalidade. O pedagogo e educador Lauro de Oliveira Lima,
num dos seus livros, nos relata que na Inglaterra, na época da guerra, houve
falta de professores e que, para suprir a deficiência, pessoas da comunidade
foram convocadas para ensinar às crianças. Naturalmente que pessoas
alfabetizadas, em condições e disponibilidade para ensinar, como se encontram
em muitos lugares. No campo da saúde foi feito coisa parecida na China, durante
alguns anos da revolução, com os chamados “Médicos dos pés descalços”.
Eram pessoas sem diploma de medicina mas que orientavam as comunidades quanto a
certas medidas que deveriam ser tomadas para prevenir as doenças.
Essas reflexões me ocorrem agora, depois da recente lei que prega o ensino do xadrez nas escolas, quando começo a ouvir falar de pessoas que acham que os professores da disciplina
deverão ser formados em educação física. Bom, achar qualquer um pode. Mas quem
achou, achou mal, pois há muito tempo eu não ouvia tão rematada tolice.
Ora, meus amigos, se o xadrez de fato for introduzido em todas as escolas, já será difícil achar, em quantidade suficiente, quem o ensine, quanto mais se houver a exigência
adicional de ter diploma de educação física. Pode ser que queiram introduzir o
xadrez no currículo dos cursos de educação física para então habilitá-los a
ensinar o xadrez, assim como existem os habilitados para ensinar natação e
basquete. Mas, por enquanto, ao que eu saiba, nada disso existe. O que vão fazer,
então? Ficar esperando que apareçam os que tenham a habilitação que eles acham
necessária?
Antigamente, quando a educação era privilégio de uns poucos, certas questões, relativas à pedagogia e à didática eram ignoradas. Os nobres e as famílias ricas contratavam sumidades
para ensinar as coisas aos seus filhos. O Euclides foi ser professor do rei de
Siracusa e o Descartes da rainha da Rússia. Os avós do Bertrand Russell
contrataram uma espécie de governanta alemã para que ele, criança, tivesse
contato com o idioma alemão, que ele aprendeu rapidamente, já o tendo dominado
aos cinco anos. O pai do Wittgenstein, um dos homens mais ricos da Europa,
levou um dos filhos para tomar aulas de música com o famoso compositor e
pianista, Felix Mendelssohn, dizendo-lhe o seguinte: “não precisa lhe
ensinar nada, deixe apenas ele respirar o mesmo ar que você respira”.
Então, meus amigos, é aquela velha história do “junta-te aos bons que serás
um deles”, que a sabedoria popular já revelou. Um amigo meu, que estudou
nos Estados Unidos e jogava basquete me contou que só o fato de estar perto das
grandes equipes, de estar perto dos grandes jogadores, de ouvir as conversas
deles, enfim, “respirar o mesmo ar que eles”, já lhe foi de enorme valia
e que aquele convívio ajudou-o a melhorar o próprio jogo.
Com o ensino universal, abrangendo todas as classes sociais, não se poderia ter sumidades em quantidade suficiente para atender a todos. Então foi preciso que se criassem as séries,
os programas e os curricula. Então cada professor, em cada série,
ensina aquilo que lhe cabe ensinar. O Aluno aprende e passa para o nível
seguinte, com outros professores, outras disciplinas, outros currícula.
Com o xadrez há de ser feita a mesma coisa. Um conteúdo básico das coisas a serem ensinadas e a maneira adequada de se fazer isso. O xadrez na escola não constitui um fim em si mesmo.
Ele entra como coadjuvante no processo educativo. E não há que se inventar a
roda, pois muito já se escreveu e disse sobre isso.
E também não é nenhum “bicho de sete cabeças” a exigir o concurso de graduados e pós-graduados. Asseguro-lhes que a imensa dos jogadores brasileiros, bons ou maus jogadores,
aprenderam o jogo com familiares que não tinham diploma de educação física e de
pedagogia. Muitos aprenderam em clubes, com professores contratados para essa
finalidade, da qual se desincumbiram muito bem sem que, para isso, jamais
tivessem passado sequer à porta de um curso de educação física.
O ex-campeão mundial Botvinnik, professor de Karpov e Kasparov, tinha diploma de engenheiro e não de educação física.
Ficar então insistindo nessa tese é dogma, tão ridículo quanto inaceitável. Coisa de Cardeal Belarmino.
E quanto às especificidades do chamado “xadrez escolar”, se é que tal coisa existe, pois me parece também que com isso estão querendo criar uma reserva de mercado, estabelecendo uma espécie
de feudo onde alguns vão se achar no direito de pontificar, excluindo outros
que podem e querem colaborar, também não é nada que não possa ser aprendido e
entendido pelas professoras das escolas que saibam jogar xadrez ou por qualquer
enxadrista que tenha a boa vontade, a disponibilidade e o desejo de querer
contribuir. Sem prejuízo dos formados em educação física. Não se os quer
discriminar, mas não há porque lhes conceder privilégios ou exclusividade.
Um amigo meu, infelizmente já falecido, era um forte jogador de xadrez e formado em educação física. Eu via nele qualidades para ser um bom professor de xadrez, não tanto pelo diploma que
ele tinha mas pela sua capacidade e compreensão do jogo. Tirando esse amigo,
que nem mais entre nós está, não tenho conhecimento de uma quantidade
significativa de formados em educação física, pelo menos no Rio de Janeiro, que
possa fazer alarde de extraordinários resultados como professores ou organizadores
de xadrez. Nesse caso, criar uma reserva de mercado para eles seria um
privilégio que o atual estado do xadrez brasileiro não pode admitir. Mais do
que isso, seria um entrave desnecessário e, por isso mesmo, inadmissível, para
o nosso xadrez.
Estou certo de que grande parte dos enxadristas brasileiros, tendo ou não diploma de qualquer tipo, está preparado e, mais do que isso, motivado, para ensinar (ou aprender como
ensinar) o jogo de xadrez nas escolas, nos clubes ou na Conchinchina. Não vamos
discriminá-los nem criar-lhes barreiras ou obstáculos. Muito pelo contrário,
vamos convocá-los, pois estão fazendo falta.
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